Institut des Hautes Etudes de l'Amérique latine
Centre de recherche et de documentation sur les Amériques

Crônica de uma destituição anunciada: a queda de Dilma Roussef da presidência do Brasil

Jânia SALDANHA

O anúncio

Santiago Nasar foi o único a desconhecer que aquele seria seu último dia de vida. Todos os habitantes do lugar antecipadamente conheciam o destino que seus dois assassinos lhe reservaram, mas nada fizeram de concreto para evitá-lo. Era um dia em que “fazia um tempo fúnebre e que no preciso instante da desgraça caia uma chuva miúda”. Assim é que Gabriel Garcia Marques descreve a saga do personagem principal de sua “Crônica de uma morte anunciada”, publicada em 1981. Se muitas interpretações podem ser feitas dessa obra, cabe lembrar que essa ainda era uma época em que muitos países da América latina viviam sob ditaduras militares que se instalaram no poder fraturando a democracia e tomando o lugar de governantes legitimamente eleitos. Como ocorreu com Santiago Nasar, na vida real, os atos preparatórios dos golpes foram sentidos previamente. A força das coisas não evitou que acontecessem. Não poderá ser essa uma das grandes metáforas dessa estória que, nos contextos da história latino-americana nada tem de extraordinária ou fantástica? Ao contrário, é dotada de uma dura trivialidade!

Com efeito, a recente decisão do Senado Federal brasileiro que aprovou o impeachement de Dilma Roussef mostra bem que cada povo tem sua saga, suas chagas e suas “mortes” anunciadas.Cinquenta e dois anos depois do dia 31 de março de 1964, o dia 31 de agosto de 2016 repete de modo mais sofisticado, sem o uso da força e sem militares, que distintas armas podem ser utilizadas pelas forças políticas conservadoras para romper com a democracia. O dia 31 entra para a história do Brasil como aquele da ruptura institucional e da superação da força do direito pela força da política.

 

O percurso

O Brasil pratica o chamado “presidencialismo de coalizão” que conduz à realização de acertos políticos intra e interpartidários. Em tal sistema, o presidente não prescinde das coalizões, das quais necessita para obter a maioria parlamentar no Congresso Nacional e, assim, realizar os projetos de governo. A “engenharia da coalizão” torna-se tão mais complexa quanto maior o número de partidos. O País possui hoje 35 siglas partidárias[1] que em sua maioria não possui projeto político-ideológico consolidado. Essa falta produz um conjunto de efeitos negativos ao mundo da política, dentre eles o fisiologismo e o pragmatismo. Obter a maioria parlamentar no Congresso Nacional cobra seu preço. Os amplos acordos de coalizão entre partidos sem a menor afinidade política inserem-se em movimentos pendulares, em um “toma-lá-da-cá” de resultados incertos. Com efeito, o fisiologismo é não apenas estimulado mas é a própria “seiva” que alimenta o pluripartidarismo e o presidencialismo de coalizão à brasileira. Ele tornou-se mais exigente no governo de Dilma Roussef na medida em que o número de partidos aumentou[2]. Por isso, aumentaram as demandas por ministérios, por cargos em comissão e por verbas. A matéria de troca, ou seja, o voto para aprovar projetos em comprovação da fidelidade, pressupunha uma articulação política habilidosa e “estômago político” para aceitar que os “fins” justificam os meios, lógica essa que, visivelmente, sempre desagradaram Dilma Roussef.

Tornou-se público no Brasil que o caráter retido de Dilma Roussef, a dificuldade de dialogar, a resistência em aceitar os “meandros” do presidencialismo de coalizão, tantas vezes motivos de queixas entre os seus  aliados, dificultaram a sua relação com o Congresso Nacional. Ela foi agravada quando a antiga Presidente demitiu sete ministros acusados de envolvimento em atos de corrupção. Embora o número de Ministérios tenha aumentado em seu governo e a divisão dos latifúndios dos cargos não tardou a ocorrer, um Congresso acostumado à bajulação, seguramente, passou a ver com pouca simpatia as resistências da Presidente que, do ponto de vista do modo de fazer política no Brasil, não eram uma boa escolha, como a experiência do Presidente Fernando Collor de Mello tratou de deixar claro. Assim, aos desafios estruturais somaram-se outros não menos relevantes associados à posição que o Brasil passou a ocupar na geopolítica global, pelos projetos sociais progressistas que adotou e pelos avanços econômicos que o colocou no lugar de 7ª economia do mundo. Em virtude disso, o País passou a assumir um papel de destaque na agenda internacional, na medida em que se tornou um dos atores mais destacados do BRICS. Evidentemente que tal condição desagradou os setores conservadores e os interesses neoliberais.

O projeto conservador de desmonte do projeto progressista que se consolidou no Brasil obedeceu a lógicas mais complexas. Ele recebeu o apoio de setores conservadores, moralistas e pouco informados da sociedade brasileira. Como refere Boaventura de Sousa Santos, “sabemos que as democracias representativas defendem-se muito mal dos antidemocratas”. À desestabilização política patrocinada pelo Congresso Nacional, que deixou de aprovar e votar os projetos do governo em 2015 somou-se a desestabilização econômica cuja dimensão foi ampliada artificialmente pelo trabalho “articulado” dos meios hegemônicos de comunicação de massa. É certo, não se pode jamais negar as derivas erráticas do Partido dos Trabalhadores, tampouco que o País precisa livrar-se da cultura colonial da corrupção e do patrimonialismo. Contudo, a crise política gestada no coração do Congresso Nacional produziu a crise econômica representada pelo desemprego, pelo aumento da inflação e pela paralisia em alguns setores da economia, motivos esses que levaram o povo às ruas em 2013. Esse quadro não impede Dilma Roussef de reeleger-se em 2014 com 54 milhões de votos. Fruto das coligações partidárias, a vitória não põe fim aos protestos e às campanhas de oposição patrocinadas principalmente por seu aliado, o PMDB, partido do Vice-Presidente. Se o jogo político pré-reeleição desafiou o governo Roussef desde a posse, em janeiro de 2015, a Presidente e o povo sentiram, mais uma vez, o gosto amargo da ingovernabilidade. Em março de 2015 as manifestações populares voltam às ruas, estimuladas pelas campanhas da grande mídia, pelo processo judiciário denominado “Lava Jato” em cujo âmbito políticos e empresários corruptos foram condenados e, pela crise econômica. Se a palavra de ordem era o impeachment, o objetivo mal escondido era o de implodir nas bases os restos do PT e do “lulismo”, sonho acalentado pela direita brasileira.

De fato, é preciso “envenenar a água do poço”, fragilizar a confiança nas instituições para, depois, encontrar razões jurídicas, mesmo que sofríveis, para afastar do poder a Presidente eleita democraticamente. Inexistindo  voto de desconfiança no presidencialismo, o impeachment é a única possibilidade para a perda do mandato. Para isso, deve fundar-se em crime de responsabilidade, conforme estabelece a Constituição. Assim, a tomada de créditos suplementares e a realização de operações de créditos com instituição financeira controlada pela União Federal – as “pedaladas fiscais” -, sem a autorização do Congresso Nacional como prevê a Constituição, foram as razões jurídicas eleitas para o pedido de impeachment. Porém, no conjunto, as manifestações orais e públicas dos parlamentares das duas Casas Legislativas na votação do impeachment repetiram, como mantras, ter sido a crise econômica, a impopularidade da Presidente e razões divinas os seus reais fundamentos que, evidentemente, não são fundamentos jurídicos para a destituição. Os fundamentos jurídicos da denúncia ou não foram invocados ou o foram debilmente nas exposições orais dos Senadores. Com isso, a decisão final foi resultado de escolhas políticas unilaterais, discricionárias e mal fundamentadas que não resistem às exigências da doutrina constitucional. Em julgamentos político-jurídicos, de caráter misto, como é o caso do impeachment, os julgadores, mesmo sendo parlamentares, têm o dever de fundamentar sua decisão na lei, especialmente em se tratando de medida tão drástica para a democracia. Mesmo que a história seja escrita por linhas sinuosas, como a da morte de Santiago Nasar, atingir o objetivo estabelecido é o que imprime movimento. Assim, o consenso político para a destituição de Dilma Roussef teve por fim principal afastar definitivamente do poder a esquerda e, assim, manter o “status quo” político conservador que nunca abandonou a política brasileira.

Há outros elementos nessa história. Pela primeira vez no Brasil políticos e empresários corruptos experimentaram o gosto amargo da prisão. Para salvar-se das consequências de denúncias feitas em “delação premiada” pelos já encarcerados no processo “Lava Jato”, políticos de diversos partidos viram no impeachment a saída luminosa para a impunidade que encontraria na Presidente um forte obstáculo.

 

Qual final?

Extinção e cortes de Ministérios[3] relacionados às demandas dos movimentos sociais, como o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, ações destinadas a atender a pauta conservadora do Congresso Nacional, como a reforma na previdência social e a privatização de empresas públicas, foram atos praticados pelo então Presidente interino que, com a ascensão à Presidência, serão intensificadas. Se as razões políticas definiram o contorno, resta saber se as razões jurídicas que fundamentaram a acusação do crime de responsabilidade encontram ou não respaldo na Constituição e, se não, o resultado final, que no sistema brasileiro também deve ser jurídico e não apenas político, foi objeto de articulada manobra política que não tem outro nome que não “golpe parlamentar”. Se o “presidencialismo de coalizão” sobrevive nos acertos interpartidários e intrapartidários, não garante a maioria parlamentar do partido do presidente no Congresso nacional e favorece as coligações pragramáticas e utilitaristas, o que conta é assumir parcela de poder. Os meios para chegar até ele, em um cenário em que a ética na política está reservada ao campo teórico, importam menos que o sucesso da empreitada.

O rol de hipóteses que autorizam o impeachment é limitado e exaustivo. A Lei 1079/50 regula os crimes de responsabilidade. Os seus artigos 10, n. 4 e 11,  invocados para o pedido de destituição de Dilma Roussef, segundo a teoria constitucional, não foram recepcionados pela Constituição de 1988 seja porque o tipo do artigo 11 da Lei 1079/50 não está presente no Art. 85 da Carta Magna, quanto porque o Art. 10, 4, que trata de “graves violações ao orçamento”, é um tipo abrangente que possibilita enorme margem interpretativa ao Congresso Nacional e, assim, favorece julgamentos discricionários e políticos. Assim, o direito interpretado de modo discricionário auxilia os políticos de plantão a usar o impeachment como se fosse a “moção de desconfiança” dos regimes parlamentaristas. Nessas razões está fundada ação judicial que Dilma Roussef apresentou ao Supremo Tribunal Federal no dia 6 de agosto. Ela pede a anulação do julgamento por  inconstitucionalidade, pois a ninguém é dado descumprir a Constituição Federal, tampouco aos legisladores. Assim, caberá a Suprema Corte analisar e rever a velha teoria da autocontenção segundo a qual um Poder não pode interferir nos atos interna corporis de outro Poder para verificar, no caso concreto, ter o Senado Federal violado ou não a “moldura constitucional”.  Frente à alegação de inconstitucionalidade, caso o Supremo Tribunal Federal negue-se a desempenhar o seu papel de guardião da Constituição, estará permitindo a criação de uma esfera de imunidade constitucional que não combina com o Estado Democrático de Direito e, fatalmente, poderá chancelar o “golpe parlamentar” que, em sua medida, representa um novo modelo de “estado de exceção”. O “barulho” das ruas produzido nos dias seguintes ao julgamento do impeachment evidencia que decisões tomadas nos bastidores ou nas salas públicas de julgamento dos Parlamentos, imprescindem da aprovação daqueles que são os genuínos detentores dos mandatos legislativos. Afinal, impeachment decretado em desconsideração dos limites constitucionais traveste-se em usurpação do poder conferido ao povo.

 

Jânia Saldanha est professeure invitée de l'IHEAL, chaire Simon Bolivar.



[1] Fonte: Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse

[2] De 2011 a 2015 surgiram oito novos partidos. Fonte TSE. Disponível em: http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse